domingo, 21 de fevereiro de 2016

A reforma

Era uma daquelas tardes modorrentas, tudo meio parado, as bandas ainda reverberando da ressaca de duas grandes expedições, agora, passado o frenesi, a calma voltava a imperar. Papay Yankee dormitava na rede, olhos cerrados e ouvidos em stand by. Ele andara ausente, havia se mudado para um longo período de estudos transcendentais no Sikkim, diziam uns e emendavam: esteve lá para recuperar um QSL de um QSO com AC3PT, Palden Thondup, dado como perdido; outros diziam que ele simplesmente havia se desligado de tudo e abandonado o rádio. Pura falta de informação. Por onde ele andara ninguém sabia.
Mas de fato mesmo, ou melhor, não se sabe como a parede do shack agora ostentava o QSL do rei do Sikkim, de alguma forma o velho havia finalmente conseguido recuperar um dos últimos QSLs perdidos. Claro, ele tinha Sikkim confirmado em 20 metros, o rei havia pago o cartão da prisão mandando um guarda, seu admirador, colocá-lo no correio. Este novo cartão era em 40 metros, novo e raríssimo na banda. Sua Majestade Palden Thondup Namgyal, ou simplesmente Palden, como era conhecido no rádio, uma ocasião contratou uma professora americana para ensinar alguns dos seus inúmeros filhos e ele acabou casando-se com ela. Quando foi deposto o governo americano exigiu que ele pudesse deixar o país com seus filhos, suas esposas, concubinas e os demais restantes do bando e ir morar nos USA. Esse rei inspirou um filme de muito sucesso na década de 60 estrelado pelo careca Yul Brynner e Deborah Kerr: O rei e eu.
Um turista do Rio de Janeiro em viagem àquelas bandas jura ter visto Papah Yankee caminhando descalso numa viela de Lhasa no Tibet com um olhar perdido no horizonte, em estado quase catatônico. Um radioamador francês, integrante do Medecins sans Frontiers, diz tê-lo visto distribuindo, igualmente descalso, sanduíches de mortadela às vítimas do terremoto em Kathmandu. Esses avistamentos foram seriamente discutidos nos jardins internos da feira de Friedrichshafen, claro regado a muita cerveja. Certeza mesmo ninguém tinha, eram apenas visões e aparições esporádicas. Alguns teóricos diziam que ele estava mesmo morando nas silentes montanhas do Himalaia devido à composição mineralógica dos maciços. Andava descalso, conjeturavam, para descarregar a imensa quantidade de RF adquirida em décadas de exposição. Por onde o velho andou permanece, ainda hoje, um dos mais insondáveis mistérios.
Nesse período de ausência do velho o sítio de Maracutaia da Serra havia passado por reformas profundas, as antenas foram todas desmontadas, lavadas, engraxadas, lubrificadas, alinhadas e remontadas; o shack teve sua instalação elétrica verificada, recebeu aterramento novo, novas estantes, uma bancada para pequenos reparos; os rádios foram todos alinhados, válvulas novas para os lineares, um keyer novo, presente de um belga; a biblioteca toda reorganizada recebeu um novo equipamento de som, os discos e livros foram todos catalogados; e o principal: a varanda recebeu telas protetoras contra mosquitos, pintura nova e mobiliário novo, mais leve, pronto para receber os amigos e alguns ascendentes eventuais.
Nos bons tempos o sítio, além dos frequentadores habituais, recebia muito bem alguns dos locais, alguns ascendentes e raramente algum dos egressos, estes não eram benvindos no sítio. Tolerar os ascendentes, dizia Papah Yankee, já é um exercício de paciência, mas os egressos ninguém aguenta. Estes últimos, queixava-se ele, querem mudar a forma de grafar os indicativos, flexionam QSLs e lineares no feminino, um verdadeior horror. Agora, depois do longo período de ausência, desta vez iluminado pelas luces transcendentais tibetianas e nepalesas talvez o velho se dispusesse receber um ou outro egresso com melhor humor, mas isso era uma aposta de alto risco.
Na outra extremidade da varanda Zé QRO conversava em voz baixa com Jota QRP sobre umas aparições fantasmagóricas de um búlgaro em 160m...
73 DX de PY2YP - Cesar