terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O zumbi

A morte é um dos fenômenos fundamentais do universo. Ela acontece para todas as criaturas quando a capacidade de adaptação do frágil e miraculoso microcosmo das células e das moléculas de proteínas, as quais denominamos de organismos vivos, sucumbe perante as agressões das forças externas ao ambiente celular. Simplificando: quando as forças externas aniquilam a capacidade de adaptação das células o resultado é a morte. Simples e definitivo.
O conceito da morte acompanha o da vida desde quando os primeiros hominídeos adquiriram consciência de que estavam vivos. A morte, pela sua inexorabilidade, desperta os mais diversos sentimentos nos humanos: fascinação, admiração, respeito, pena e medo. É esse medo que tem tangido os homens às religiões em busca de abrigo e proteção. O medo do desconhecido, o medo do que haverá após a morte. O medo de ter perdido a última chance em vida de ser alguém ou de ter deixado como herança um bem ou um exemplo a ser seguido. O outro lado do medo chama-se recompensa, o que faz com que os homens tentem se tornar bons para garantir uma vida eterna com conforto ao lado do Criador gozando as delícias celestiais para todo o sempre. E assim o homem vai levando a vida à espera do inexorável Juízo Final (em maiúsculas para ficar mais solene), mas sempre tendo em mente que poderá ser perdoado pelos seus erros, pelas suas falcatruas ou pelos seus pecados. Desgraçadamente o equilíbrio entre a virtude e a safadeza é tênue e pode ser rompido a qualquer instante. O comportamento ao longo da vida oscila entre esses dois bastiões comportamentais, um leva à glória, o outro à desgraça. Um leva ao paraíso, o outro ao inferno.
Conta a lenda que um conhecido DXer graças às suas boas antenas e recursos materiais galgou uma posição de respeito ímpar perante seus pares; todos o admiravam, afinal seus feitos eram dignos de nota: score elevado no DXCC; WAZ; WAS; o primeiro do mundo ao falar com todas as aldeias da Alsácia; o primeiro do mundo a falar com todos os oblasts, além de vários outros feitos importantes. Dizem os antigos que a menor das válvulas que ele usava na sua estação exigia duas mãos para carregá-la, dessas válvulas que têm alças para facilitar o manuseio. As suas gigantescas antenas permitiam fazer comunicados em horas improváveis para a banda. Os horários eram impossíveis para os pobres mortais com antenas de fio e recepção ruidosa, para ele os QSOs saiam da zona do impossível e entravam na zona do improvável, mas mesmo assim, ninguém ousava duvidar. Os mais experientes diziam simplesmente: impossível não, apenas improvável, mas com as antenas dele talvez tenha sido feito. E lá iam os cartões aparecendo em horários improváveis para bandas baixas, muito depois da camada D ter sido formada; outros com estações que nunca operaram, numa ou noutra banda; outros em bandas que não foram operadas pelas expedições. Estes últimos continuavam na zona do impossível, não conseguiam ir para a zona do improvável por razões óbvias. E ele seguia seu caminho com QSOs verdadeiros misturados aos inexistentes, misteriosamente comprovados.
Ao que se sabe esse DXer tinha suas células radioamadorísticas irrigadas pela mais pura RF, mas, infelizmente a RF não tinha sido suficiente para irrigar suas células cerebrais. Certa vez, perguntado por um de seus pares como havia conseguido ouvir uma estação da dificílima zona 29 ele respondeu: "eu tenho uma beverage de 750 metros apontada para a Cidade do Cabo." De fato, olhando no mapa mundi a zona 29 fica mais ou menos nessa direção, porém, desgraçadamente a Terra é redonda e o sinal de RF não obedece a projeção de Mercator. Até para mentir é preciso um mínimo de conhecimento, de inteligência. Alguns dos QSLs recebidos eram muito estranhos, como se houvessem sido alterados.
O fato é que a RF em excesso dentro do shack bombardeando seguidamente as células cerebrais, que já não eram tão abundantes assim, acabou por tirar-lhe os últimos resquícios de resistência das células responsáveis pela seriedade, caráter, honra e outros componentes morais que fazem do DXer um homem de bem. Esse contínuo e implacável bombardeamento de RF acabou por vencer a capacidade de adaptação e sobrevivência das células e dos neurônios, a esta altura em franca decadência, até que finalmente o DXer morreu, morreu a pior das mortes, a morte incompleta, daqueles que mesmo mortos estão condenados a perambular e assombrar os outros. E assim tendo se tornado um morto-vivo, um zumbi, permanece entre nós, insepulto e assustador, uma caricatura grosseira do que fora outrora. Seus QSLs já não trazem respeito nem glória, seus diplomas nada valem, não passam de papéis coloridos que impressionam apenas um ou outro visitante desavisado, seus pares há muito não o respeitam.
73 DX de PY2YP - Cesar
Post scriptum: Isto é um conto de ficção. Qualquer semelhança com algum DXer terá sido mera obra do acaso.